Livros Enquanto Espelhos, Meras Coincidências
Há um aspecto no conceito de construção e aprendizado que transcende a mera interpretação materialista de Hegel ou qualquer outro adjetivo pomposo que o leitor de minhas notas possa empregar sobre o assunto. Houve um tempo em que me encontrava perdido, possuía porém uma noção do que não queria para minha vida, mas não sabia como escapar de um destino quase certo: o aterrorizante fracasso perante os padrões sociais. A força opressora do coletivo parece esmagar qualquer brasileiro comum, especialmente aqueles de origens humildes, sem grandes influências ou acessos à alta cultura.
Um dos grandes momentos da vida adulta é compreender que, neste mundo, não há garantias absolutas para nada. E se você, meu filho(a), nasceu no Brasil, essa incerteza é ainda mais acentuada. Hoje, ao refletir em retrospectiva, posso afirmar com segurança que a primeira luz surgiu para mim através dos livros.
Ficção Quase Não-ficcional
Histórias ficcionais têm o poder de moldar as conexões neurais dos leitores. Dois pesquisadores da Universidade de Washington em St. Louis escanearam os cérebros de leitores de ficção e descobriram que os participantes criavam simulações mentais intensas e vívidas das paisagens, sons, movimentos e sabores encontrados na narrativa. Essencialmente, seus cérebros reagiam como se estivessem realmente vivenciando os eventos descritos na história. Ler foi demonstrado como capaz de colocar nossos cérebros em um estado agradável semelhante ao transe da meditação e proporcionar os mesmos benefícios para a saúde associados ao relaxamento profundo e à calma interior.
Minha querida mãe, em meio ao caos de nosso lar, buscava livros na biblioteca pública para incentivar eu e meus irmãos ao hábito da leitura. Eu, como uma criança chata e inquieta, tinha preguiça de ler e reclamava a cada dois minutos durante a nossa leitura conjunta, onde cada um lia um parágrafo. Apesar de seu esforço, o gosto pela leitura não penetrou em meu subconsciente lúdico como uma criança de 7 a 8 anos. Ela fez a sua parte e seu empenho é lembrado com carinho. Contudo, o tempo passou, e os livros infelizmente não se tornaram parte de meu dia a dia, assim como no cotidiano da maioria. No entanto, existia um desejo de construir e aprender que transbordava meu limitado entendimento. Sem conhecer as ferramentas necessárias, continuei no âmbito imaginário, sem a ajuda de elementos que pudessem fomentar conexões neurológicas em minha mente inquieta e dispersa.
Pessoas inteligentes sempre me fascinaram por sua capacidade de articulação e, principalmente, pela memória aguçada ao lidar com tópicos diversos. No entanto, mesmo nutrindo esse pseudo interesse por assuntos de complexidade maior, minha própria base de conhecimento pessoal era tão básica e superficial que eu não conseguia, por alguma razão, conectar a ideia de pessoas inteligentes ao hábito da leitura. Pode parecer uma bobagem, mas para um jovem de 12 anos, o raciocínio nem sempre é tão claro. Minha concepção, pelo menos até onde consigo relembrar, era de que essas pessoas possuíam alguma espécie de dom ou vocação inata para a vida intelectual, e eu, como espectador, apenas assistia com admiração.
Até que, aos 14 anos, li meu primeiro livro completo por livre e espontânea vontade. Até então, havia folheado algumas obras literárias para as aulas de português e história, mas nunca por vontade própria, o que reforçava a ideia de que não existem mudanças de fora para dentro - por mais que sejamos conduzidos até a porta, é preciso abri-la com nossas próprias mãos, sem excessões. O livro em questão apresentava a história de um jovem chamado Daniel, um adolescente com uma vida aparentemente comum, mas repleta de mistérios. A trama gira em torno de envelopes misteriosos que começam a chegar em sua casa, virando sua vida de cabeça para baixo ao revelar segredos sobre seu passado e o mundo ao seu redor. Determinado, Daniel embarca em uma jornada para desvendar esses enigmas antes que seja tarde demais - o livro se chama "Antes que o Mundo Acabe". A partir daí, seguiram-se centenas de livros lidos, mas deixemos este ponto para outra nota. O ponto é, a partir daquele momento, algo dentro de mim havia mudado para sempre.
Ler não apenas amplia nosso conhecimento do mundo, mas também tem o poder de inspirar mudanças. Os livros nos proporcionam uma maneira única de mergulhar na vida de outra pessoa ou experimentar algo totalmente novo. Permitem-nos ser mais empáticos e compreensivos com os outros de formas que poderiam ser desafiadoras na vida real.
Ao estudar livros que exploram outras culturas, estilos de vida e experiências, podemos aprofundar nossa compreensão dessas pessoas e até mesmo inspirar mudanças positivas em nossas próprias vidas. Somos transportados para um mundo imersivo que pode exercer um impacto profundo em nossas próprias emoções, pensamentos e ações. Ao sermos expostos a novos conhecimentos, somos desafiados em nossas crenças e instigados a reconsiderar antigas suposições, ampliando assim nossa perspectiva sobre o mundo ao nosso redor. As mudanças ocorrem em tempo real, levando-nos a estabelecer conexões mentais e formar conceitos anteriormente desconhecidos, que agora impactam nosso presente e o de outros, através de ideias registradas há décadas, séculos e até milênios.
Um exemplo notável do que foi mencionado nos parágrafos anteriores é Epiteto, um distinto filósofo estóico do século I d.C., que personifica o poder transformador dos estudos e da sabedoria. Nascido escravo, ele superou suas origens modestas através da busca incansável pelo conhecimento e da reflexão filosófica. Sua influência ultrapassou barreiras sociais e econômicas, alcançando até os corredores do poder imperial romano. Marcos Aurélio, um dos mais notáveis imperadores de Roma e estudante assíduo de Epiteto, foi profundamente influenciado pelos ensinamentos do filósofo que outrora fora escravo. Este exemplo marcante não só evidencia a capacidade da leitura e dos estudos em transcender quaisquer barreiras sociais, mas também demonstra como a dedicação ao conhecimento pode empoderar indivíduos a atingirem patamares extraordinários e a influenciar os mais poderosos líderes da história. Dessa forma, fica claro que ideias, leitura, estudo e contemplação realmente moldaram o destino da humanidade, independentemente das circunstâncias externas. Isso demonstra que a escravidão intelectual pode ser mais prejudicial do que a física.
O Que Foi Tirado de Nós
O essencial desta discussão transcende meramente o objeto livro, alcançando as dimensões a que as ideias transmitidas podem se estender; não existem limites para o impacto de uma ideia. Ideias são resistentes a qualquer tipo de destruição forjada pelo homem, exceto quando confrontadas com a noção de incapacidade mental ou o desenvolvimento de uma inclinação pelo que deteriora o que é bom e justo. Pessoalmente, percebo que, enquanto sociedade, e especialmente no Brasil, perdemos a capacidade de compreender que a leitura e o esforço em compreender (e perceber) o mundo ao redor nos ajudam a estabelecer novas conexões neurais, facilitando a abstração da realidade. O verdadeiro desafio do brasileiro não reside na quantidade de leitura, mas na qualidade desta. Jornalecos, revistas Playboy e postagens no Instagram ainda são consumidos diariamente pela nossa população. O Brasil, apesar de produzir um volume significativo de artigos acadêmicos, enfrenta um desafio em termos de impacto global. Isso não se deve à falta de investimento no ensino superior, comparável ao de países da OCDE, mas à disparidade no investimento na educação básica, que recebe três vezes menos recursos. A impressão é a de que adoecemos desde a base, ou simplesmente já começamos doentes e, de forma proposital, culturalmente corrompidos. Quando vemos um sujeito dizendo: "sou especialista em Ciências Sociais pela Universidade X" é, no mínimo, digno de desconfiança. Infelizmente, a universidade pública é o palco da loucura, que eles chamam de "educação" e "intelectualidade". O ENEM 2023 valida essa ideia: canhoto, inclinado e ideológico, algo que merece uma discussão detalhada em outra triste nota.
Por mais paradoxal que possa parecer, há um elemento de otimismo neste texto, pois agora compartilho o que me aconteceu e, em parte, como aconteceu. Como frequentemente ouço do Professor Guilherme Freire: "resolveremos o problema da educação no Brasil através dos clássicos da literatura!". Alguns podem considerar essa ideia uma loucura, mas eu, por experiência própria, sei que não é.
Anos mais tarde, após realizar algumas conquistas significativas - com a promessa de muitas mais realizações no futuro - algumas pessoas me indagam sobre a fonte do meu desejo de entender um pouco de tudo, abrangendo desde ciências políticas até matemática aplicada. Houve um período em que eu não conseguia fornecer uma resposta clara. No entanto, hoje, plenamente ciente, recordo com a vívida memória de um elefante: tudo teve início nos livros.